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As cantoras e compositoras indígenas: a partir da esquerda Brisa Flow, Katú Mirim e Kaê Guajajara | Foto: Arte O GLOBO

De Kamille Viola do GLOBO:

Elas são indígenas, mas cresceram na cidade. Passaram a vida tendo suas identidades negadas, já que para muitos ainda impera a antiga (e ultrapassada) crença de que indígena “de verdade” está na aldeia, vivendo de pesca e caça – como se a colonização não tivesse impactado a vida dos povos originários e eles vivessem num passado intocado, sem acesso à internet, por exemplo. Em comum, além do racismo que sofrem, estão os meios que encontraram para propagar a memória dos povos indígenas e a luta antirracista: a música e a internet.

Nascida e criada na periferia de São Paulo, Katú Mirim foi adotada por um casal branco com 10 meses e somente anos mais tarde descobriu que seu pai biológico era do povo boe-bororo, do Mato Grosso. Não conseguiu saber nada sobre sua origem nos livros de história ou perguntando à professora. Foi somente quando passou a ter acesso à internet, aos 19 anos, que encontrou informações. Quando começou a fazer rap, foi natural falar da luta dos povos originários.

– Tem todo um sistema detrás disso, um apagamento para que a população não valorize a sua História, porque quem não sabe de onde vem não tem como cobrar justiça da História. Eu até falo disso numa música minha. Se eu não fosse atrás do meu povo, não entendesse quem eu sou, não ia cobrar justiça. E quem não cobra justiça é menos um para cobrar do Estado. Então o Estado quer mais é que a população não saiba que esse país é do povo originário, que a gente está num solo indígena. A periferia não acordar é melhor para o Estado. Quando eu acordei e vi isso, me tornei mais uma voz potente e acordei mais pessoas que são como eu: indígenas, estão na periferia e não sabem quem são ainda, porque a sua família teve que se esconder – explica ela, que ano passado lançou o EP “Nós”.

Filha de indígenas do Chile, a rapper Brisa Flow, nascida em Minas Gerais e radicada em São Paulo, também usa a sua música para falar da questão indígena. Ela tem dois álbuns, “Newen” (2016) e “Selvagem como o vento” (2018), e um EP, “Free Abya Yala” (2020). Em seu povo, os mapuche, foi buscar inspiração em histórias como as dos guerreiros Lautaro, que matou o conquistador espanhol e ameaçou invadir Madri como revanche, e Janequeo, uma mulher que liderou um exército para expulsar os invasores e vingar a morte de seu marido.

– Saber das histórias de vitória foi uma vantagem. Fiz a trilha sonora da peça de João Nin Potiguara falando sobre Tibira, o indígena LGBTQIA+ que foi assassinado em São Luiz do Maranhão simplesmente porque não era do gênero que a colonização esperava. Foi a primeira transfobia praticada pelo Estado que a gente tem documentada. E, fazendo a trilha, fiquei pensando: “Nossa, é uma história triste, mas contada por um indígena se torna uma história de vitória.” É bom a gente saber histórias de vitória, dos nossos que não morreram de cabeça baixa. E o quanto incomoda a nossa cabeça erguida, e o quanto é difícil sustentar a cabeça erguida constantemente diante dessas violências – reflete.

Natural de Mirinzal, no Maranhão, Kaê Guajajara vivia em uma terra não demarcada e precisou mudar para o Rio com sua família ainda criança por conta de conflitos com madeireiros. A artista também vê a música indígena como um caminho para mudar a situação dos povos originários. No ano passado, ela lançou o EP “Wiramiri”.

– Eu já dei aula para fora do Brasil, contando vivências e histórias através da música e do show. Dou aula em várias escolas também, com a questão indígena no Rio e outros estados. A pessoa quer passar aquilo para os alunos, mas não sabe como, então chama um indígena. Muitas vezes sou convidada para fazer o show, porque as próprias letras das músicas já denunciam, fica muito melhor a comunicação. No meu show, as pessoas que estão ali só para ouvir um som maneiro acabam ouvindo letras que não estavam preparadas para ouvir – conta.

Por estarem em meio urbano, elas esbarram em dificuldades como os velhos estereótipos associados a indígenas, como se todos vivessem hoje da forma que os livros de história relatam.

– Além de ser um corpo dissidente, e ao mesmo tempo que a gente sofre o racismo, por causa deste fenótipo indígena, tem essa coisa da galera falar: “Você não deveria estar no meio urbano”. Enquanto dizem isso, negam que a gente esteja. Se você fala que é indígena na periferia, por exemplo, ouve que “não existe mais índio” – descreve Katú. – Acho que o maior desafio é mostrar para as pessoas que nós não estamos no passado, que existem indígenas em contexto urbano. E que não é porque a gente está na cidade que deixa de ser indígena. Não é porque eu nasci numa periferia que eu deixei de ser indígena. A minha retomada vem junto de uma identidade, de um povo, de um coletivo, vem como memória. Mas a maior dificuldade é essa mesmo, de entendimento. Sempre tem alguém para apagar sua identidade, para falar que você não deveria estar nesse local – completa.

Kaê Guajajara observa que um dos principais obstáculos é a falta de políticas públicas para indígenas na cidade: o senso comum é de que todos estão na aldeia e de que essas aldeias são autossuficientes a ponto de não precisar de nenhuma interação com as cidades.

– Pensam que há o conto de fadas de que o território é autossustentável, de que nós temos uma autonomia, de que a gente só come o que planta e pesca, como se, frequentemente, a colonização não estivesse impactando diretamente o nosso bem-viver – diz. – Eu não sei de onde tiraram esse espanto, “nossa, o indígena está na cidade!”, já que todo o território brasileiro é indígena e nós estamos realmente em todos os lugares. E você vê que existem indígenas formados, que estudam. E as faculdades são indígenas? Não, eles vão estudar na cidade. Inclusive a principal bandeira da Aldeia Maracanã é a universidade indígena, que é negada constantemente pelo Estado. Não existem políticas públicas, então temos dificuldade, e a  mais importante delas é o território. Dificilmente, um indígena tem casa própria na cidade. Praticamente não existe isso – pontua.

Brisa Flow observa que, desde a infância, os indígenas em contexto urbano passam por “uma chuva”, uma carga que vem no sistema educacional da branquitude que busca o tempo todo retirá-los da cultura originária, “que é de onde vêm esse rosto, esse cabelo, essa língua, que é de onde vem tudo, e muitas vezes a gente nem sabe de onde é, porque nossas famílias participaram de uma migração forçada, até para territórios urbanos”.

–  Eu acredito que a dificuldade começa nesse lugar da identidade, porque acho que o que sustenta o corpo é a identidade. Você se torna o outro dentro do território que eles consideram deles, os espaços que não são deles, mas que eles consideram deles. Você é o outro e o primeiro obstáculo é o sistema não aceitar que você se volte para a cultura originária nesse espaço, nesse lugar de reconhecimento, de querer falar sobre. Um sistema que te faz não se sentir bem dentro do seu próprio corpo, não se sentir orgulhoso, não achar que é capaz, e que leva para um embranquecimento constante – analisa.

Ela observa que a luta dos indígenas por território está na questão da moradia, sim, mas também em outros ambientes, inclusive espaços culturais, como os da música, de playlists em plataformas de streaming a festivais.

– E aí você começa a ver que também precisa ter uma demarcação nesses espaços, que a gente também às vezes é chamado só para falar de luta em rodas de conversa, que eles dão cachê de ajuda de custo de R$ 200, R$ 300, sendo que a gente quer fazer show de 5K, de 10K. Já estamos nesse nível. A gente está fazendo força para continuar vivo e produzindo na quarentena – reclama Brisa.

Kaê Guajajara concorda e acredita que sequer dá para chamar de visibilidade ainda o que artistas indígenas da música estão tendo hoje no Brasil.

– A gente ainda está caminhando muito torto para a frente, as pessoas ainda são bem racistas. Até em questão de valores: os nossos são sempre subvalores. O cachê que vai para um artista branco, esse mesmo valor é repartido para, sei lá, quatro artistas indígenas. Não é que a gente possa dizer: “Olha, o meu cachê é esse.” Falam: “Para você eu tenho isso aqui.” É sempre muito abaixo. Eles ainda não entenderam que nós somos artistas. Sempre vêm falar com a gente num tom sofrido: “Ai, como é sua vida?”. Nunca é para perguntar sobre nossos projetos como artistas – denuncia.

Katú reforça que é frequente surgirem convites para fazer apresentações em troca de “visibilidade para a causa”:

– Desvalorizam tanto a nossa arte que a gente recebe proposta de show em que dizem que é uma chance de mostrar o nosso trabalho. “É uma oportunidade de você falar sobre a luta e o massacre dos povos indígenas.” Tem cachê? Não tem. Mas aí a gente vê que o branco está recebendo. Muitas vezes eles fazem isso com as pessoas negras também. Não querem pagar pelo nosso trabalho, e isso é racismo, é injusto – diz a rapper. – Para você ter ideia, o racismo ainda me impede de estar no mainstream da música. Eu sou rapper, mas hoje estava vendendo pão de mel com a minha mãe. Não tem nenhum indígena no mainstream da música. Eu trabalho com música, mas ainda não vivo dela.

Com o apagamento da cultura indígena nos espaços tradicionais, a internet virou uma forma dessas artistas propagarem seus trabalhos e a história dos povos originários. Katú mantém o site Visibilidade Indígena. Kaê vende o livro “Descomplicando com Kaê Guajajara: o que você precisa saber sobre os povos originários e como ajudar na luta antirracista”, com renda revertida para a educação de crianças indígenas. E todas usam as redes para fazer seus trabalhos na música chegarem a cada vez mais gente.

– Eu tenho que falar da luta ancestral e da História, porque é a minha forma de chegar para as pessoas, já que os livros não estão chegando, estão sendo queimados, e que para escrever um livro, você tem que estar no código deles. Então, já que as coisas não chegam, nós não estamos nos comerciais, na TV, nos livros, nas faculdades, a gente tem que usar o que a gente tem para estar – observa Brisa Flow.

Katú analisa que os estereótipos racistas relacionados a indígenas impedem que eles alcem voos mais altos dentro da indústria musical do país.

– Temos artistas indígenas da música contemporânea talentosíssimos, que o Brasil e o mundo deveriam conhecer. Mas, justamente, por a sociedade entender que o índio está no mato, somos vistos como “índio falso”. Por exemplo, a gente manda música para uma gravadora. Automaticamente, ela já exclui, sem escutar. Nós somos nossos próprios empresários. Temos que gravar música, divulgar nas redes sociais, responder e-mail, fazer toda a nossa divulgação, todo o marketing, cuidar de um perfil no Instagram. A gente acaba criando núcleos, pedindo para a galera compartilhar no Spotify e fazendo toda a assessoria que artistas não indígenas têm uma galera para fazer. No final, a internet acaba ajudando, sim. Porque a gente se divulga, usando hashtags – descreve.

No entanto, ela observa, não se pode romantizar isso, porque há um desgaste com o acúmulo de funções.

– Nesta pandemia, eu tive que fazer coisas de áudio, de câmera, de edição, de maquiagem, cuidar da minha filha, cuidar da casa, fazer alguns “corres” muito loucos, ser fotógrafa e diretora de arte. Tanta coisa ao mesmo tempo que não tenho como romantizar, não era para ser assim – finaliza.